Hoje lembrei de algo que me comoveu muito no ano passado. Resolvi partilhar com vocês o texto que escrevi. Creio que trará momentos de reflexão.
Rio de Janeiro, 13 de junho de 2009 – às 2h 43min
É preciso muito mais que olhar...
É que todos os dias ela entrava um pouco mais tarde que os outros... E todos os dias sentava-se no último lugar... E toda vez que aparecia, estava sempre com aquele olhar de tristeza, com aquele olhar de quem não estava com vontade de nada, com aquele olhar de quem apenas gritava um pedido silencioso de SOCORRO. Havia algo que a incomodava, e foi a mim que ela escolheu para partilhar a sua história. Mas para isso, era preciso que dentre 35 crianças, houvesse a sensibilidade no olhar para notá-la e para compreender os motivos que tanto a angustiavam.
Não foi uma conversa fácil. Ela estava com raiva. Aqueles olhos de apenas oito anos de vida, naquele momento pareciam ter 80. Oitenta anos de uma vida sofrida, de uma vida que não fez crescer uma criança que mais tarde pudesse lhe dar a mão quando o adulto balançasse. Pensei que talvez ali, naquele instante, eu pudesse ser a pessoa que mudaria a história de vida dela, e quis saber de tudo o que lhe afligia. E ela então despejou aquele sofrimento, que de tão silencioso já era escancarado. Estava triste porque não tinha nada. As palavras eram dela: “Não tenho nada para vir para cá. Não tenho lápis, não tenho cola, não tenho tesoura... Não tenho a minha pastinha! Ela falou que ia comprar o meu material e não comprou!!!” Ela, a mãe, pessoa que naquele instante era o motivo de toda aquela amargura. Amenizei a situação dizendo que “ela” estava passando por alguma situação difícil, motivo que fez com que não comprasse o material até então. Pedi paciência e emprestei tudo meu para ela usar naquele dia. Um sorriso, ainda que triste.
Dias seguintes, aquele olhar perdido ainda se fazia presente... Mais alguns dias e a mãe da menina procurou por mim para esclarecer um fato ocorrido, pedindo para que eu conversasse com ela. Lá vou eu de novo, enfrentar o olhar de raiva, de tristeza e de amargura. Dessa vez foi ainda mais complicado. Complicado por envolver um turbilhão de sentimentos, que nesta altura do campeonato não eram somente dela. Eram meus também. Para a pergunta que lhe fiz, sobre como estava sendo sua alimentação em casa, não ouço a resposta. Apenas vejo os olhos mareados, a boca torcida demonstrando raiva, e um silêncio que me parecia uma eternidade. Pensei que havia tocado na ferida. Depois do instante eterno, então ouço ( e vale lembrar que são palavras de uma menina de oito anos de idade):
“_ Comida?! Que comida?! Eu não tenho comida não! Olha Cris, eu não tenho feijão pra colocar na panela! Eu não tenho arroz pra colocar no fogo! Eu abro o armário da minha casa e não tenho nada! Eu não tenho nem infância se você quer saber. Minha vida é tomar conta dos meus irmãos.” (ela tem quatro irmãos – todos gerados por uma mulher de apenas 23 anos, que está grávida do sexto filho).
Era difícil acreditar que eu estava escutando aquelas palavras de uma menina de oito anos apenas. Virei meu rosto para o lado e respirei fundo, afim de conter as lágrimas que já queriam rolar. Por um instante eu não sabia o que dizer a ela afim de confortá-la, então já ia colocar em prática a minha tese: não sabendo o que fazer, abrace. Mas ela criou coragem e continuou ali, sentadinha ao meu lado fazendo a catarse que há muito precisava: “_Meu pai não quer nada. Meu pai só quer saber de bar e de arranjar mulher na rua. Quando vai pra casa, é só pra brigar, pra gritar e bater. Não bota um quilo de nada dentro de casa! Você sabe quando eu me sinto feliz? Eu me sinto feliz quando tô aqui com você. Mas eu não tenho nada...! Nem lápis, nem tesoura, nem cola e nem pastinha preta para colocar os trabalhos”. ( e continua chorando).
Segurei as mãos dela e lembrei-a de que havia lhe dado um caderno de capa dura há alguns dias atrás, momento em que cantei a música do Toquinho ( O caderno). Ela me disse que estava cuidando direitinho dele, como o Toquinho dizia. Então eu disse que queria que ela ficasse tranquila, pois se o lugar onde ela sentia felicidade era ali comigo, que eu lhe daria os materiais que ela não tinha. Naquele momento parecia que algo mágico havia acontecido, porque os olhos dela brilharam e ela abriu um sorriso gigante perguntando: “_Você vai me dar canetinha também???”.
Este é o nosso mundo real. Este é o cotidiano de muitas crianças que estão dentro de uma sala de aula buscando os últimos lugares (quando a disposição das carteiras ainda está na roupagem da escola tradicional). Este é um dos motivos da dificuldade de aprendizagem: a criança tendo roubada a sua infância. Esta é uma das causas da também famosa (e trágica) evasão escolar, que a cada dia vai nos roubando mais e mais crianças. Situação bastante contrária ao que nos prega a Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB ( 9.394, de 20 de dezembro de 1996): Art. 2º. A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Como falar em desenvolvimento pleno do educando quando sabemos da desestruturação familiar, do desemprego, da desnutrição, da incapacidade das políticas de governo e da nossa própria incapacidade de lidar com tais problemáticas dentro de salas de aula sempre tão abarrotadas de crianças? São questionamentos para muitas outras discussões, para muitos outros nós que teremos que aprender a desatar. Por ora, o que posso dizer é que resolvi fazer uma parte que sei que não me custará muito. Se a fala da menina parecia tão amarga por não ter nada, e ao mesmo tempo esperançosa quando dizia que era ali, na escola que se sentia feliz, será então ali que ela terá o seu mundo mais colorido. Com aulas ainda mais divertidas, ainda mais poetizadas. E para ajudar a colorir o mundo dela, um estojo de canetinhas!
Que lindo! Estou mocionada...Também acho que se posso fazer não vou esperar por quem deveria...Parabéns por sua sensibilidade!!!
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